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Um doente oncológico com 2300 anos repousa em Lisboa

Em Agosto de 2010, as três múmias humanas da colecção de antiguidades egípcias do Museu Nacional de Arqueologia (MNA), em Lisboa, foram vistas por dentro atravésde sofisticados equipamentos de Raios-X digital e TAC Multicorte num estudo inédito em Portugal que reuniu uma equipa de radiologistas, bioarqueólogos ou egiptólogos. Numa destas múmias foram detectadas várias lesões osteoblásticas,sugestivas de cancro da próstata metastizado, um caso único no mundo. Os resultados foram publicados no passado mês de Outubro no International Journal of Paleopathology e captaram a atenção mundial. NOTÍCIAS MÉDICAS ouviu o Dr. Carlos Prates, que coordenou a equipa de radiologistas do IMI— Imagens Médicas Integradas, e o Director do MNA, Dr.Luís Raposo, que coordenou o projecto





Uma das mais antigas evidências de  cancro da próstata metastizado foi encontrada numa múmia humana do período Ptolemaico(c.310-30 a.C) que faz parte da colecção egípcia do MNA, sendo a primeira vez que esta patologia é detectada numa múmia egípcia enfaixada.
Este caso único no mundo, descrito no International Journal of Paleopathology [1 (2011) 98–103], foi descoberto no âmbito do projecto multidisciplinar Lisbon Mummy Project (LMP), iniciado em 2007, que consistiu na análise não-destrutiva por Raios-X (RX digital e TAC Multicorte de 64 cortes) das três múmias humanas e dos sete animais mumificados que estão à guarda do MNA.
O LMP, coordenado pelo Director do MNA, Dr.Luís Raposo, reuniu uma equipa de radiologistas e técnicos da empresa IMI — Imagens Médicas Integradas (Dr. Carlos Prates, Dra.Sandra Sousa, Dr. Carlos Oliveira e Dr. Fernando Cardoso) e especialistas nacionais e estrangeiros nas áreas da Bioarqueologia (Dr. Álvaro Figueiredo,University College London), Egiptologia (Prof. Luís Manuel Araújo, Instituto Oriental, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e Profª Salima Ikram,American University, Cairo) e Conservação (Dr. Mathias Tissot, MNA). Este projecto contou ainda com o apoio da Siemens Portugal e da Fundação Calouste Gulbenkian.
Além da múmia ptolemaica — um homem sem nome designado no estudo por M1 — repousa na Sala Egípcia do MNA a múmia de Pabasa (M2),do Período Tardio (c.525-332 a.C). Segundo a história narrada no seu sarcófago de madeira, Pabasa era um sacerdote encarregado de vestir a estátua do deus da fertilidade, Min. A colecção inclui ainda a múmia de Irtieru (M3), do Terceiro Período Intermediário (c.945-712 a.C), que está depositada num caixão antropomórfico de cartonagem.
No dia 22 de Agosto de 2010, as três múmias humanas do MNA foram cuidadosamente transportadas para as instalações do IMI na Avenida da República, em Lisboa, no meio de um enorme bruaá mediático. Não era para menos: a iniciativa era inédita em Portugal.
O estudo radiológico de múmias tem mais de100 anos. Poucos meses depois de Wilhelm Röntgen ter realizado o primeiro raio-X, em 1896, a nova técnica era aplicada em múmias. Com a evolução tecnológica, abriu-se o caminho para estudos cada vez mais sofisticados e rigorosos.
O LMP seguiu o protocolo do estudo da colecção de múmias egípcias do Museu Nacional de Antiguidades de Leiden( Holanda), considerando-se cinco áreas: Antropologia Física, Paleopatologia, Detalhes de Embalsamamento, Grau de Preservação e Faixas e Artefactos.
Entre os equipamentos usados na análise das três múmias humanas do MNA, destaca-se a Tomografia Computorizada Siemens Somaton Sensation de 64 cortes, com tecnologia Z-sharp e resolução isotrópica de 0,33 mm. A informação digital foi também processada em 2D e 3D, obtendo-se imagens verdadeiramente excepcionais. Ao todo, foram recolhidas 90 mil imagens.“Foi um estudo de ponta, ao nível da exigência e do registo de dados”, assinala o Dr. Luís Raposo, que coordenou o projecto.

Cancro,uma entorse grave e uma osteocondrose juvenil

A múmia ptolemaica (M1) tem uma idade de morte calculada entre os 51 e os 60 anos. A equipa do IMI detectou várias lesões osteoblásticas, sugestivas de cancro da próstata metastizado. O sexo, a idade e a distribuição das lesões sustentaram o diagnóstico, que segundo os investigadores terá sido a causa de morte provável deste homem. É a primeira vez que um cancro da próstata metastizado é detectado numa múmia egípcia enfaixada. Esta múmia de Lisboa tornou-se entretanto numa “estrela mundial”,nota o Dr. Carlos Prates.
O coordenador da equipa clínica do LMP assinala que na múmia do sacerdote Pabasa (M2), com uma idade de morte calculada entre os 40 e os 50 anos, foi detectada uma lesão típica de prévia entorse grave em inversão, o que o faria coxear.
Na múmia de Irtieru (M3), com uma idade de morte calculada entre os 35 e os 45 anos, os radiologistas detectaram alterações que sugerem uma osteocondrose juvenil ou doença de Scheuermann.
O estudo das múmias animais do espólio do MNA — que incluem crocodilos, íbis e um falcão — realizou-se logo em 2007, servindo de teste para a fase mais complexa do estudo das múmias humanas.
O Dr.Carlos Prates refere a grande qualidade do trabalho de mumificação do falcão, que mantém o coração perfeitamente preservado. No íbis detectou-se a falta de uma vértebra, colocando-se a hipótese de que terá sido essa a via para o processo de evisceração. No caso do crocodilo de maiores dimensões, os investigadores descobriram uma luxação na primeira vértebra cervical, que está deslocada, e uma fractura na mandíbula. Apenas pistas e conjecturas sobre a forma como os répteis eram mortos.
O Director do MNA, Dr. Luís Raposo, indica que há várias hipóteses em aberto sobre o modo de divulgar e apresentar os resultados deste projecto ao público em geral. A notícia destas descobertas já corre pelos órgãos de comunicação especializados e generalistas, o que tem levado mais gente ao MNA para visitar a colecção. O museu conta produzir uma obra ilustrada sobre o projecto, prevendo-se também a realização de uma exposição documental, temporária, no MNA. Entretanto, na Sala Egípcia do MNA foi montado um ecrã onde estão a correr algumas das imagens recolhidas pela equipa do IMI. A Siemens e a RTP já estão a produzir documentários sobre o LMP.

Radiologistas fascinados pela História

Em 2002,um grupo de radiologistas do IMI interessados em História e Arqueologia propuseram à administração da empresa a criação de um núcleo dedicado à Radiologia em Arte e Arqueologia. Assim nasceu o IMI-art. Ao longo dos últimos anos, esta equipa de radiologistas e de técnicos tem colaborado com vários investigadores e instituições nacionais de forma graciosa. O Dr. Carlos Prates sublinha a importância deste mecenato cultural do IMI, que tem vindo a disponibilizar os seus equipamentos em prol da investigação histórica e arqueológica, tão carente de recursos financeiros no País.
Logo no ano da criação do IMI-art, em 2002, a equipa colaborou com o arqueólogo Fernando Rodrigues Ferreira na análise dos restos mortais atribuídos ao humanista e historiador Damião de Góis (1502-1574), que estão guardados na Igreja de São Pedro, em Alenquer. A verdade veio ao de cima. Afinal, não se tratavam das ossadas de Damião de Góis, mas de uma amálgama de ossos que pertenciam a 10 pessoas diferentes, entre homens, mulheres e crianças. Em 2009,a equipa do IMI-art colaborou novamente com o Dr. Fernando Rodrigues Ferreira num projecto de investigação a alegados restos ósseos de D. Nuno Álvares Pereira. Através de raios-X e TAC, a equipa estudou os ossos recolhidos na primeira sepultura do Santo Condestável, no Convento do Carmo, em Lisboa. “É um projecto bastante complexo, que não está concluído, e não tem ainda resultados disponíveis”, esclarece o Dr. Carlos Prates.
No final de 2006, a equipa do IMI-art desafiou o MNA para o estudo radiológico das múmias animais e humanas da sua colecção, usando os equipamentos do IMI.“ Era uma obrigação estudar estas múmias”, defende o radiologista. O MNA abraçou ogo este projecto, constituindo-se então a equipa multidisciplinar do LMP. A primeira fase consistiu na avaliação das múmias animais, seguindo-se, alguns anos mais tarde, o estudo das três múmias humanas. Como assinala o Dr. Luís Raposo, arqueólogo de formação, “o MNA tem a mais completa colecção de antiguidades egípcias existente em Portugal”. Esta colecção é constituída por mais de 500 peças que cobrem mais de cinco mil anos de História do Egipto, desde a Pré-História (c.6000-3000 a.C) até à Época Copta (395-642d.C).
O IMI-art também colaborou com o MNA no estudo da placa votiva zoomórfica de grés da Antado Espadanal (Estremoz, Évora), do Período Calcolítico, e associou-se à Câmara Municipal de Cascais, em 2010, para estudar fémures pré-históricos da Gruta II de São Pedro do Estoril, entre outras colaborações.
O Dr.Carlos Prates defende que seria interessante criar uma rede de investigação que juntasse Centros de imagiologia, museus, médicos e técnicos interessados na área da História e da Arqueologia. Acredita que seriam parcerias frutuosas que poderiam dar uma nova vida ao património dos museus nacionais.




Que futuro para os museus?


O Dr.Luís Raposo admite estar “muito preocupado” com a situação actual dos museus nacionais. “Ou se arranjam verbas de reforço dos orçamentos correntes dos museus nacionais ou a crise será grave”. Mas junta que “não chega garantir os mínimos para que os museus tenham as portas abertas. É preciso que seja dada alguma autonomia aos museus para que captem receitas para actividades”. O Director do MNA avisa: “o País tem que pensar muito bem se quer ter museus nacionais, para quê e em que condições. As nossas grandes colecções de memória colectiva têm, ou não, prioridade, ou vão ser atiradas para um canto sem nenhum tipo de investimento? Essa é que é a questão de fundo”.
O MNA, fundado em 1893 pelo médico José Leite de Vasconcelos (1858-1941), está instalado no Mosteiro dos Jerónimos, em Belém, desde 1903. O Dr. Luís Raposo afirma que o museu necessita de obras de ampliação, mas a solução ideal, defende, seria a construção de um edifício de raíz. Sempre se bateu contra a proposta de transferência do MNA para a Cordoaria Nacional, na Junqueira, um projecto, lembra, que vem dos tempos do Estado Novo e que uma comissão técnica constituída na altura já tinha até desaconselhado. De acordo com o Director do MNA, “a informação que temos do actual Governo é que essa opção deixou de ser a definitiva e que estão em aberto várias hipóteses, entre elas, a realização de obras para ampliar espaços”.







Publicado no Notícias Médicas n.º3142, de 21.12.2011



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